quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Você sabe o que significa “Estado Democrático de Direito”?


A expressão encontra-se expressa no 1º artigo de nossa Carta Magna de 1988, dando ênfase ao caráter democrático do regime político a ser adotado no Brasil a partir da referida Constituição Federal, que solidificou a transição de um antigo regime – de trevas – que perdurou de 1964 a 1985. O referido regime era caracterizado pela atuação desmedida do “poder público” com total desrespeito à sociedade e pelo cerceamento e subtração de direitos dos cidadãos brasileiros, em uma época que se vivia debaixo da violência de atos institucionais associados à extrema repressão das liberdades.

Bonavides (2002) ressalta que o surgimento da nova constituição democrática fora resultado de um processo gradativo, fruto da insatisfação e pressão social generalizada, ansiosa por restaurar as despedaçadas instituições democráticas por meio da única via legítima, uma Assembleia Nacional Constituinte[i].




Vale mencionar que a criação da nova Carta Magna se deu através da criação de um Congresso Constituinte. Ou seja, o Congresso Nacional transformou-se em Assembleia Nacional Constituinte e, assim promulgou a nova Constituição Federal brasileira.

A nova Constituição passa a representar, naquele momento histórico, a formalização das reivindicações da sociedade, tão prejudicada pelo regime totalitário. Nesse momento a titularidade do poder constituinte – o de se criar, construir, reformular uma Constituição Federal – passa a ser do povo efetivamente. Em um momento de comoção social, política e jurídica, através de um evento solene, os representantes do povo, utilizando-se do Poder Constituinte Originário[ii], colocaram no papel a nova constituição que desaguava em um novo processo de redemocratização do país, no qual estabelecia uma “Nova República”, democrática e social.

O novo texto constitucional passou a dedicar mais espaço aos direitos – hibernados e obstruídos pelo regime de exceção passado. Prevalece-se, ou melhor, pretende-se prestigiar a partir de então o “welfare state”.

Analisemos o referido art. 1º, da Constituição Federal de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal destaca uma característica marcante do Estado Democrático: a possibilidade de substituir o governante pelo voto popular em períodos predeterminados. Sob a influência das teorias democráticas, o legislador enfatizou que a titularidade do poder constituinte é do povo (assim entendidos os brasileiros natos e naturalizados – art. 12, CF/88).  Entretanto, apesar do povo ser titular do poder de instituir normas constitucionais e leis infraconstitucionais, ele o exerce por meio de representantes eleitos, direta ou indiretamente. Esse exercício do poder demonstra o caráter democrático semidireto ou participativo do país.



Adotamos um sistema “híbrido” de democracia, em que se confere soberania popular, atribuindo poderes aos cidadãos para interferirem na condução da coisa pública através de mecanismos de controle dos atos estatais (plebiscito, referendo ou iniciativa popular), por meio do sufrágio universal[iii] e do voto direto[iv], secreto, universal, periódico[v] e igualitário[vi] para escolha de nossos representantes no governo. Ressalta-se que, de acordo com Lenza (2009), o exercício do voto, com todas as características supracitadas, é considerado pela doutrina majoritária como norma supereficaz ou de eficácia absoluta, ou seja, é intangível, não podendo ser emendada. Em outras palavras, é considerada uma cláusula pétrea e por isso, contém uma “força paralisante total” de qualquer legislador que – por meio do exercício do Poder Constituinte Derivado[vii] – explícita ou implicitamente, vier a contrariá-la. Esse tem sido o sistema adotado em nosso Estado desde então.

Em outro sentido, sendo o povo titular do poder, este também se submete a ele. A princípio, todos devem respeitar as leis e o direito, que são criados com vistas a proteger fundamentos e princípios garantidores de uma sociedade livre, justa e solidária (um dos objetivos da República Federativa do Brasil) para que dessa forma haja condições mínimas de uma existência digna.



Objetivando descortinar a poética e imponente expressão (Estado Democrático de Direito), torna-se necessário também analisar o preâmbulo do texto constitucional, no qual, institui-se de maneira expressa um Estado Democrático, em que se objetiva assegurar valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Tais valores seriam: o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

De acordo com Lenza (2009), sendo democrática e liberal, nossa Constituição Federal de 1988 foi a que mais conferiu legitimidade popular.

É possível identificar o caráter democrático em diversos dispositivos da norma constitucional. Ceneviva (2003) aponta alguns, que são de suma importância para a caracterização do Estado Democrático de Direito:

  • Livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV). As tendências sociais podem expressar plenamente seus anseios dentro do limite da lei (art. 5º, XVI e XVII; art. 14 e art. 17)
  • Acesso dos cidadãos a todos os cargos, com poucas reservas a brasileiros natos (art. 37, I)
  • Plebiscito, referendo e iniciativa popular em assuntos relacionados com a soberania do povo (art. 14)
  • Descentralização (art. 1º e 18), pluralismo político (art. 1º, V) e transparência administrativa (art. 37)
  • Igualdade de todos perante a lei (art. 5º, caput), subordinados ao principio da legalidade (art. 5º, II)
  • Lesão ou ameaça de lesão de direito individual reparável pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV), apto a assegurar a execução de suas decisões;
  • Liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV) e proibição de qualquer espécie de censura (art. 220)  

Apesar do belo texto constitucional, o Estado Democrático de Direito (minha opinião) é uma ficção jurídica que se defronta com realidades globais muito distantes desse ideário de bem estar social. A maioria das normas não passa de promessas, propostas, projetos que não ultrapassaram a condição propositiva. Esse aspecto é evidenciado pelo art. 3º do texto constitucional em que se definiram os objetivos fundamentais, os quais, claramente não foram amplamente alcançados passados 23 anos da promulgação da nova Constituição Democrática.



Nossa Constituição é recheada de normas de eficácia limitada, declaratórias de princípios meramente programáticos[viii] que veiculam programas a serem implementados pelo Estado mediante lei infraconstitucional, com vistas à busca da justiça social. Lenza (2009) cita alguns exemplos: art. 196 – direito à saúde; art. 205 – direito à educação; art. 215 – direito à cultura; art. 218, caput – ciência e tecnologia; art. 227 – proteção à criança....

Há muito que se comemorar desde a época da famigerada ditadura. Conquistamos liberdades, direitos e garantias, mas ainda há muito que se fazer para que o verdadeiro Estado Democrático de Direito prevaleça em nossa sociedade. Principalmente, políticas públicas sérias e comprometidas com o welfare state. Sendo assim, é ingenuidade intelectual supor que a partir de uma constituição democrática como a nossa, a justiça social se materializará efetivamente. Não se pode pensar que haja justiça social em um país em que a desigualdade social impera, a miserabilidade está longe de ser erradicada (embora haja essa preocupação por parte do governo e algumas ações tem se efetivado), onde ainda exista trabalho análogo ao de escravo, exploração de crianças, discriminação (dissimulada) com relação à mulher no mercado de trabalho e tantas outras mazelas que subtraem a dignidade da pessoa.

O Estado Democrático de Direito é uma contradição, uma ficção jurídica, uma teoria que somente se viabilizará com a efetiva participação popular. Portanto, exerçamos nosso poder soberano com responsabilidade e senso crítico. Cabe a nós a mudança e o estado de bem-estar social.

Finalizo reproduzindo um trecho do livro de Paulo Bonavides em que o doutrinador cita os dizeres de Afonso Arinos, no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988, acerca do constitucionalismo contemporâneo na era do Estado Social:

“É importante insistir neste ponto. A garantia dos direitos individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições contemporâneas, mas a garantia dos direitos coletivos e sociais, fortemente capitulada nos textos, sobretudo nos países em desenvolvimento e, particularmente nas condições do Brasil, torna-se extremamente duvidosa – para usarmos uma expressão branda – quaisquer que sejam as afirmações gráficas existentes nos documentos, como este que estamos, hoje, comemorando. Afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão, ou falta de sinceridade, quem sabe, de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem garantia – eis a situação.”

Bibliografia:

BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002.
CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.




[i] O exercício do poder constituinte democrático se dá tradicionalmente através de uma Assembleia Nacional Constituinte, criada especificamente com o objetivo de se criar a nova constituição. Entretanto, em 1988, transformou-se o Congresso Nacional em Congresso Nacional Constituinte, fez-se a nova Constituição Federal e logo se dissolveu, voltando a ser simplesmente, Congresso Nacional.

[ii] O “Poder Constituinte Originário” (PCO) – também conhecido por primário, inaugural, genuíno, inicial ou de 1º grau – é o poder que elabora uma nova constituição. O PCO é ilimitado juridicamente ou autônomo com relação à constituição passada. Ele é incondicionado com relação à forma, não há limite algum e sua nova constituição não pode ser declarada inconstitucional. A titularidade do PCO é permanentemente do povo.

[iii] Sufrágio universal é o direito de votar e ser votado sem qualquer tipo de discriminação, como aquelas de ordem econômica, intelectual, sexo, religião, cor, raça.

[iv] Direto porque o cidadão vota diretamente em um candidato, sem qualquer intermediário;

[v] Em um Estado democrático de direito, o exercício do voto é periódico porque exige que a representação seja feita através de mandatos por prazos determinados.

[vi] Igualitário porque cada voto tem apenas um único valor que deve ser igual para todos independente de qualquer fator discriminatório.

[vii] O Poder Constituinte Derivado pode ser entendido como o poder reformador do texto constitucional (que altera a norma constitucional) ou decorrente (poder de complementá-la).

[viii] Normas programáticas são aquelas “através dos quais o constituinte, em vez de regular, direta ou imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais ou administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”. (Pedro Lenza)

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