domingo, 20 de março de 2011

Escravidão Contemporânea no Brasil


Passados mais de 120 anos da Abolição da Escravatura no Brasil – em pleno século XXI – a exploração de seres humanos persiste de diversas formas, dentre elas, a exploração do trabalhador. Milhares destes sobrevivem em condições de total degradação humana, com direitos básicos cerceados e em regime de trabalho forçado – um desrespeito atroz aos direitos humanos – exercido por pessoas que se baseiam na lógica retrógada escravagista de séculos atrás, beneficiando-se financeiramente de pessoas humildes que são extirpadas do meio social digno e democrático. Além disso, os neo-escravagistas ainda são beneficiados pela morosidade do sistema e pela falta de punição para os que são descobertos; também pela realidade social de muitas famílias, as quais vivem em extrema pobreza e exclusão social, sem acesso às políticas públicas de educação, saúde e tantas outras.

A redução do ser humano à condição análoga a de escravo é uma realidade global. No Brasil, em diversas localidades a dignidade de famílias inteiras – incluindo crianças – é corrompida e usurpada por exploradores de mão de obra. O cerceamento de direitos e a privação de liberdade do trabalhador ocorrem de diversas formas, algumas vezes, isoladas ou em conjunto. De acordo com a OIT, as mais comuns são: servidão por dívida, isolamento físico, retenção de documentos, vigilância ostensiva, alojamento inadequado, suscetibilidade a doenças, condições de saneamento precárias, alimentação insuficiente e em condições inadequadas de conservação, remuneração inadequada (quando há) e salários atrasados, além de maus tratos e violência.


Vale ressaltar uma das características supracitadas acerca da exploração do trabalhador: a servidão por dívida, também chamada de “truck system”, que é uma das formas mais cruéis e comuns em situações de cerceamento de direitos e liberdade do trabalhador. Normalmente os trabalhadores são aliciados pelo “gato” – figura central do trabalho análogo ao de escravo no Brasil. Este, que atua no mercado (ilegal) de trabalho, alicia e arregimenta mão de obra de cidades longínquas e a instala em fazendas pelo interior do país, normalmente com um adiantamento de pagamento, junto a promessas de bons salários que são condicionados à determinada quantidade de trabalho realizado. Entretanto, por trás do “gato”, esconde-se o fazendeiro explorador, o verdadeiro predador da dignidade humana, e quando essa mão de obra – muitas vezes formada por famílias inteiras – chega ao local, percebem que fora ludibriada. Os trabalhadores são obrigados a pagar preços superfaturados pela “moradia” (muitas vezes alojamentos em péssimas condições), pela “alimentação”, pelo transporte e pelos instrumentos de trabalho. E além de serem obrigados a pagar pela dívida fraudulenta, são coagidos moralmente a saudá-la.

O caso José Pereira
Em setembro de 1989, quando tinha somente 17 anos, José Pereira e um companheiro, com o apelido de Paraná, tentaram escapar de uma fazenda onde eles e outros 60 trabalhadores eram forçados a trabalhar sem remuneração e em condições desumanas. Eles foram surpreendidos por funcionários da fazenda e atacados com tiros de fuzil. Paraná morreu. José Pereira sobreviveu porque foi julgado morto. Ele e o corpo do companheiro foram enrolados em uma lona e abandonados na rodovia PA-150.[i]


Há que se conscientizar de que a exploração não acontece somente nas fazendas, mas também na grande cidade, bem próximo de nós. Como exemplo, em São Paulo (capital), no mês de fevereiro desse ano, a polícia deteve uma rede de aliciadores que participavam de um esquema de exploração de travestis, incluindo menores, que se prostituíam em regime de trabalho escravo. Na mesma capital, são recorrentes os casos em que empresas têxteis ligadas ao ramo da moda aliciam mão de obra colombiana e os mantêm em regime de trabalho análogo ao de escravo.

A fiscalização e busca pela erradicação dessa prática é uma antiga preocupação por parte da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e diversos organismos da sociedade. Em 1930, a Convenção nº 29 da OIT dispôs sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. Na referida convenção admitiam-se algumas exceções, tais como o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado, o serviço militar e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, etc. Em 1957, o Brasil ratifica a Convenção nº 105, na qual há o compromisso de se abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso como medida de coerção ou de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; como método de mobilização e de utilização de mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; como medida disciplinar no trabalho, como punição por participação em greves, ou como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.


Em nosso ordenamento jurídico, o “trabalho análogo ao de escravo” é previsto no Código Penal Brasileiro (CPB) e na Constituição Federal (CF). O artigo 149 do CPB adotou um conceito mais amplo do que foi estabelecido nas normas da OIT, já que inclui o trabalho degradante e jornada exaustiva, mesmo que não haja evidência da restrição de liberdade do trabalhador. Prevê pena de dois a oito anos de reclusão, multa e pena correspondente à violência praticada. Ainda assevera que nas mesmas penas incorre quem restringe, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador com o intuito de retê-lo no local de trabalho. Nosso CP traz ainda outros dispositivos que tratam direta ou indiretamente da exploração do trabalhador[ii].

Os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais estão previstos na Constituição Federal (do artigo 7º ao 11) mas, indiretamente, também são abordados no artigo 186, no qual condiciona a propriedade rural ao cumprimento da função social da terra. Essa função social da terra – também prevista no artigo 5º, XXIII – abrange a observação das disposições que regulam as relações trabalhistas e a exploração da terra que favoreça o bem-estar dos trabalhadores. Do contrário, a terra pode ser desapropriada para fins de reforma agrária. Portanto, é compreensível que a utilização de trabalho análogo ao de escravo não cumpre a função social e, portanto, é uma possibilidade de desapropriação. Embora, não haja registros de aplicação prática.


Nesse sentido, há em tramitação uma Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 438/2001, proposta em 1999[iii]. Caso seja aprovada, a referida PEC prevê a desapropriação de terras onde forem localizados trabalhadores submetidos ao trabalho análogo ao de escravo, seria mais um passo a caminho da erradicação do trabalho escravo. De acordo com a PEC, as terras desapropriadas seriam utilizadas em reforma agrária, priorizando os trabalhadores nelas resgatados. Há que se destacar que a desapropriação da terra como medida punitiva já existe em nosso ordenamento para aqueles que utilizam a terra para plantio de psicotrópicos (art. 243, CF/88). Além disso, é importante salientar que a expropriação tratada na referida PEC não seria “automática”, sendo assegurados, obviamente, o devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Entretanto, a PEC só será aprovada se houver mobilização social.

A erradicação do trabalho análogo ao de escravo deve efetivamente ser viabilizada, seja por meio de fiscalização mais ostensiva, seja por meio de medidas coercitivas e punitivas mais duras ou por ambas medidas em conjunto. É cada vez mais inaceitável tamanha violação aos direitos dos trabalhadores e num sentido mais amplo, aos direitos humanos. O princípio da legalidade determina que a liberdade da pessoa deve estar no limite da lei e, por que não dizer, no limite do respeito aos direitos humanos?! Sendo assim, deve ser combatido de todas as formas, a começar pelo texto constitucional. O direito à vida, à dignidade humana se sobrepõe ao direito de lucro ou a terra, portanto, reduzir o homem, à condição análoga a de escravo é uma flagrante injustiça que deve ser sobrepujada, guerreada e combatida da forma mais “dolorida” ao explorador: atingindo seu “bolso”.

Quem escraviza seres humanos não deve ter direito a terra. A terra deve servir ao fim social. A escravidão contemporânea usurpa do ser humano sua dignidade e não pode ser premiada com a impunidade. Dessa forma, penso que todos podemos fazer algo para combater essa prática lamentável, a começar pelo “boicote” a produtos de empresas “sujas”.[iv]

A aprovação da PEC nº 438 pode representar um grande avanço para a nossa sociedade, vamos apoiar essa idéia.

Finalizo com uma das histórias relatadas em “Retrato Escravo” (OIT):


Maria e José

Maria Francisca Cruz é mãe de sete filhos e uma quase viúva. A incerteza, que a deixa em uma corda bamba e a impede de ir adiante, é por culpa de “um tal de Francisco das Chagas”. Empreiteiro de serviços e enganador de pessoas, Chico – como tantos outros Chicos batizados em homenagem ao mais popular santo do país – levou-lhe o marido.

José Alves de Souza foi convencido pela doce promessa de trabalho na fazenda Bacuri, deixando Santana do Araguaia, no sul do Pará, para trás.

Depois disso, o silêncio.

– Até hoje não recebi notícias, nem dinheiro.

Enveredou-se por outro colo? Está preso? Tem medo de voltar? Quem sabe?

– Falam que morreu gente por lá, que outros conseguiram fugir. Até agora, ele não voltou.

Dor maior não é saber que acabou. É não ter certeza disso.


Consulta Bibliográfica

• Cadastro de Empregadores / “Lista Suja”
http://www.mte.gov.br/trab_escravo/lista_suja.pdf
• Câmara dos Deputados
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=36162
• Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/conselho/combate_trabalho_escravo
• Ministério do Trabalho e Emprego
http://www.mte.gov.br/trab_escravo
• Ministério Público do Trabalho: CONAETE
http://www.pgt.mpt.gov.br/atuacao/trabalho-escravo
• Organização Internacional do Trabalho
http://www.oit.org.br/prgatv/in_focus/trab_esc.php
• Retrato Escravo / João Roberto Ripper; Sérgio Carvalho; Organização Internacional do Trabalho (OIT ). - Brasilia: OIT, 2010 (disponível no site da OIT)



[i] Caso divulgado pela OIT Brasil
[ii] Ver os artigos 132, 197, 203, 204, 206 e 207 do CPB.

[iii] Para ser aprovada, a emenda necessita de três quintos de aprovação, em dois turnos de votação, no Senado e na Câmara dos Deputados. Em 2001, ela foi aprovada no Senado e enviada à Câmara, onde foi, em 2004, aprovada em um primeiro turno de votação. Desde então, ela aguarda o segundo turno de votação da Câmara para, se aprovada, voltar ao Senado para nova apreciação, devido às emendas feitas desde 2001.

[iv] O MTE possui um Cadastro de Empregadores Infratores, também conhecido como “Lista Suja”. O cadastro lista as pessoas físicas e jurídicas flagradas utilizando mão-de-obra em condições análogas à de escravo, dando publicidade à fiscalização e desencadeando uma série de ações do governo, do setor privado e da sociedade civil para punir e desencorajar a prática.